O individualismo tem sido apresentado pelos sociólogos como uma característica essencialmente negativa do século XXI. Juízos de valor à parte, ele é um fenômeno que não pode deixar de ser considerado nas análises quanto ao futuro das relações de emprego.
Zygmunt Bauman, em seu livro Modernidade Líquida, explica que capitalismo e socialismo seriam variações do fordismo, cujas características essenciais eram o dirigismo, a redução da liberdade e a fidelidade das relações de trabalho. O século XXI teria revelado não só o naufrágio do socialismo, mas principalmente o do fordismo. O “capitalismo pesado” foi substituído pelo “capitalismo leve”, dependente mais dos fluxos do capital e de tecnologia do que dos grandes parques industriais, e no qual o conceito de emprego sofre uma brutal transformação.
Os empregos passam a ser vistos como relações transitórias, como etapas de uma carreira. Na imagem fornecida pelo autor, não somos mais parte da tripulação de grandes navios, conduzidos pelos dirigentes industriais. Navegamos em nossos próprios e pequenos barcos, em um misto de liberdade e fragilidade. Não cabe mais questionar se esta mudança é boa ou má. Simplesmente não há mais grandes navios.
A tese de Bauman tornou superada a teoria da burocracia weberiana. Não há mais espaço para o dirigismo, seja na esfera da empresa, seja na do Estado. Este é mais um elemento de convencimento no sentido da ineficiência do estado dirigista. Cabe ao Estado ensinar a navegar e, quando possível, produzir um bom vento. Não adianta mais buscar o timão. Este não funciona.
Duas outras características do “capitalismo leve” seriam a multiplicidade de escolhas e o individualismo. Não há mais uma grande verdade (capitalismo ou socialismo) em busca de meios eficientes à sua implementação. Os fins não são mais certos. Perdemos o “irmão mais velho”, que nos orientava e defendia. Estamos sós, o que gera tanto oportunidades que nos impulsionam quanto a insegurança que traz consigo a angústia. Para Bauman, “estar inacabado, incompleto e subdeterminado é um estado cheio de riscos e ansiedade”.
Outra obra que nos oferece uma visão contemporânea sobre os reflexos do individualismo na regulação das relações de emprego é o livro O Mundo é Plano, de Thomas Friedman.
Enquanto usualmente o individualismo é vinculado ao consumismo, ao egoísmo ou à ganância, Thomas Friedman o vê como uma nova realidade de trabalho, em que os indivíduos passam a ter oportunidades globais.
Para o autor, o processo de globalização apresenta três fases distintas. A primeira, que vai até 1800, seria a globalização dos estados, em que o encurtamento das distâncias era fruto dos interesses comerciais estatais (com ou sem colonização). A segunda, que vai de 1800 a 2000, seria a globalização das empresas, em que as distâncias foram ainda mais encurtadas por força da atuação das multinacionais. Já a terceira, a globalização do indivíduo, é o produto da revolução da web.
Pessoas que residem em diferentes partes do mundo podem trabalhar sem que a distância entre elas e seu empregador represente um obstáculo intransponível. Que o digam os prestadores de serviços de apoio administrativo indianos, que organizam documentos e processos de comunicação de empresas sediadas na Suíça ou nos Estados Unidos. Quando um consumidor americano recorre a um serviço de call Center, provavelmente será atendido por um indiano (que se adaptou tanto para trabalhar madrugada adentro quando é dia nos Estados Unidos quanto para falar com sotaque norte-americano). Mais relevantes do ponto de vista econômico são as empresas indianas de desenvolvimento de softwares, que se apresentaram ao mundo como mão de obra barata para sanar os problemas do bug do milênio, para desde então tomar a dianteira neste mercado altamente competitivo.
Neste mercado global, há que se debater a forma de regulação das relações trabalhistas. O rigorismo de nossas normas deixa de ser um problema apenas para os empresários brasileiros, e passa a ser mais um potencial fator de desvantagem comparativa com outros países menos regulados no plano trabalhista. Se a estrutura do emprego mudou, o direito deve acompanhar as mudanças. Nossas leis continuam na era do fordismo (na linguagem de Zygmunt Bauman), ou na da globalização 2.0 (na linguagem de Thomas Friedman).
A oportunidade histórica é evidente, e não pode ser desperdiçada. Ao contrário das demais fases da globalização, em que os agentes eram essencialmente europeus ou norte-americanos, na globalização 3.0 (para manter a imagem oferecida por Thomas Friedman), a atuação dos agentes econômicos deixa de depender de um pesado background estatal.
Os norte-americanos já perceberam que é ineficiente a manutenção de estruturas voltadas à prestação de serviços básicos, quando eles podem ser desenvolvidos em outros países, com suporte tecnológico. Os custos com a mão de obra local não são páreo para os encontrados na Índia, para manter o exemplo. Os indianos já perceberam este filão, e estão, até o momento, navegando tranquilamente neste mercado. Bangalore é um dos locais mais conectados do mundo, e está receptivo a qualquer modalidade de prestação de serviços que possa ser executada à distância (o que envolve não só a prestação completa do serviço, como também a realização de partes de um serviço que continua a ser prestado no mercado de origem).
Cabe a nós, brasileiros, considerar a situação atual, e nos prepararmos não exatamente para o futuro, mas sim para um presente que teimamos em não conhecer. Somos sagazes em criticar o off-shoring, acusando os responsáveis pela exploração de povos dominados. A realidade, porém, é outra. Indianos, chineses e outros estão saindo da pobreza por revelarem eficiência na prestação de serviços para os mercados consolidados. Para os antigos empregados nestes mercados consolidados, abre-se a oportunidade para buscar funções mais complexas. Enquanto isso, nós fornecemos commodities, esquecendo que a produção de tecnologia é o fator essencial de desenvolvimento econômico.
Nesta dança das cadeiras em que se transformou a ordem econômica mundial, a maioria dos países adota as melhores estratégias para conseguir um bom lugar, enquanto nós permanecemos à distância, criticando. Em pé.