A piedade é um sentimento nobre. Não se questiona o valor da ação daquele que estende a mão ao menos favorecido, pelo simples fato de ser menos favorecido. Mas este sentimento, de elevada conotação ética, não se confunde com a busca pela função social do direito. A função do direito não é a de ser piedoso, mas sim a de promover a justiça e o desenvolvimento social.
Há muitas decisões judiciais em que são ignoradas disposições legais específicas, sob o argumento de que a busca pela função social do direito justifica o afastamento, ou uma reinterpretação, de tais comandos normativos. Mas sua motivação essencial é o sentimento de piedade que o julgador nutriu pela parte que apresenta condição de inferioridade econômica. Decisões assim tomadas são simpáticas. Trazem à nossa memória o heroísmo de Robin Hood.
Em várias situações, contudo, as decisões pautadas neste conceito de função social do direito têm efeito contrário ao interesse social. Decisões piedosas, mas afastadas das necessidades de desenvolvimento social, vêm contra, e não a favor, da tão afirmada função social do direito. Se os efeitos de uma decisão são imediatamente percebidos pelas partes, a reiteração de tais decisões gera reflexos em toda a sociedade. E tais reflexos podem ser negativos, e gerar consequências que de forma alguma são compensadas pela opção de proteção imediata daquele que se revela menos favorecido.
Vejamos os casos em que os julgadores desconsideram a personalidade jurídica de sociedades empresárias pelo simples fato de os bens e direitos destas não serem suficientes ao pagamento de suas dívidas. De acordo com os artigos 50 e 1.052 do Código Civil, os sócios de uma sociedade limitada somente podem ser pessoalmente obrigados a pagar as dívidas assumidas em nome da sociedade se houver a demonstração de fraude. Quando esta não estiver configurada, a solução jurídica aplicável à situação de insolvência é a abertura de um processo de falência.
Mas são extremamente comuns decisões judiciais que desconsideram a personalidade jurídica, autorizando a responsabilização pessoal dos sócios, sem a demonstração de fraude. Seu fundamento explícito é a inexistência de bens e direitos penhoráveis no patrimônio da sociedade. Seu fundamento implícito é o sentido de piedade nutrido pelo credor da sociedade (exceto quando este for um banco, que, dentro da estrita lógica da piedade, nunca tem razão).
As decisões assim tomadas podem estar recheadas de fundamentos éticos, mas geram efeitos sociais danosos na medida em que a elevação desproporcional dos riscos impostos aos empreendedores (para além do que determina a própria lei) desestimula a criação e manutenção de atividades empresariais, aumentando os índices de desemprego e, em consequência, prejudicando qualquer projeto de desenvolvimento econômico e social. São muitos os casos em que a satisfação de um credor traz desemprego e distribuição social de prejuízos. Prejuízos muitos superiores aos que seriam suportados pelo credor imaginado.
E não se deve limitar a análise ao caso em que um credor está diante da sociedade. Deve-se imaginar também, e principalmente, todos os possíveis empreendedores que deixam de alocar seus recursos em atividades produtivas em razão da elevação indevida de riscos pessoais que tais decisões acarretam.
Claro que não se está a afirmar que os empresários não têm a obrigação de pagar suas dívidas (empresário que, no caso, é a pessoa jurídica da sociedade, que não se confunde com os seus sócios). É evidente que eles devem cumprir suas obrigações, de acordo com a lei. Mas o que a lei não prevê é que pelas dívidas contraídas em nome de uma sociedade devam os sócios ser pessoalmente responsabilizados. Esta extensão de responsabilidade nega a estrutura das sociedades limitadas; que não têm este nome por acaso.
Aliás, vale também analisar a situação dos devedores que vão ao Judiciário para evitar o cumprimento de suas obrigações, especialmente em operações bancárias. A situação é tão comum que não nos espantamos mais com cartazes que anunciam, da forma mais direta possível: “livre-se de suas dívidas!”
Há decisões que acabam por afastar os devedores de suas obrigações, não porque havia nulidades contratuais ou cobranças indevidas, mas pela invocação da função social do direito e, implicitamente, pela antipatia que as instituições financeiras têm frente ao cidadão comum. Dentro de um senso imediato de justiça, incrementado pelos lucros bilionários que as instituições financeiras divulgam trimestralmente, os bancos nunca têm razão.
Decisões que condenam os bancos são simpáticas. Mas muitas vezes nos esquecemos que os custos destas decisões são repassados àqueles que não buscaram o Judiciário, bem como pelos bons pagadores.
A consequência final é uma elevação natural nas taxas de juros, resultante da consideração dos riscos impostos aos credores pelas decisões que tomam o partido dos devedores, liberando-os de suas obrigações (ao invés de simplesmente afastar os excessos ilegais).
Ou seja: a nobreza para o com o próximo identificado pode gerar severos prejuízos para com os próximos invisíveis, que não integram a relação processual. Buscar a função social do direito é buscar a satisfação dos interesses da coletividade, e não simplesmente estender a mão à parte mais frágil na relação processual. A isto se chama piedade, que faz muito bem à consciência do julgador, ainda que à custa de outras pessoas, que talvez estejam em posição ainda mais delicada.