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Devemos temer um direito made in China?

Publicado em: 20 jan 2008

O debate entre os defensores e os detratores da economia de mercado é caracterizado mais pela intolerância do que pela construção lógica de argumentos e contra-argumentos. O tom da conversa é bem demonstrado pelos títulos dados aos livros escritos e seis mãos por Plinio Apuleyo Mendoza, Carlos Alberto Montaner e Álvaro Vargas Llosa, nos quais se defende abertamente a necessidade de a América Latina promover as transformações que conduzam à economia de mercado. As obras, lançadas em 1996 e 2007, foram intituladas Manual do perfeito idiota Latino-Americano e A volta do idiota. Idiotas seriam os defensores de uma esquerda contrária à economia de mercado. A reação à ofensa, quando articulada, vem amparada em obras emocionais, como as produzidas por Eduardo Galeano, ou em intermináveis diatribes anticapitalistas, como as lançadas por Noam Chomsky. Em todos os casos, os argumentos perdem-se como vozes isoladas, e o conhecimento não se constrói.

Neste quadro, um dos pseudo-argumentos utilizados pelos combatentes da economia de mercado é a revelação de uma das facetas mais visíveis da economia chinesa: a exploração da mão de obra local, sujeita a intermináveis e nada salubres jornadas de trabalho, em troca de salários que não permitem mais do que a subsistência. Quando um defensor da economia de mercado aponta para a necessidade de flexibilização do direito do trabalho, reage um detrator com a invocação do caso chinês, por meio da inegável e quase sofista afirmação de que não queremos que o nosso povo se sujeite à repetição daquele modelo de regulação das relações trabalhistas, e mesmo de defesa dos direitos humanos. Neste contexto, surge a pergunta: devemos temer a adoção de normas jurídicas made in China?

Não haveria como aceitar passivamente o desrespeito aos direitos humanos e ambientais que dão sustentação à eficiência chinesa no plano industrial. Às populações que gozam de garantias trabalhistas mínimas, seria um pesadelo projetar-se em um operário do delta do Yang-tsé-kiang. No plano ambiental, se os dejetos e emissões não tratados fossem de igual forma produzidos pelos demais países, nosso planeta em poucos anos se transformaria em uma esfera inabitável. Para além destes dois aspectos mais evidentes, a China ainda fornece um histórico de corrupção e desrespeito à democracia que espanta até mesmo cidadãos de países tropicais pouco afetos à obediência a padrões razoáveis de civilidade.

Mas nossa natural (ainda que inócua) rejeição ao modelo chinês não deve tomar a forma de uma negação ao sistema de economia de mercado. O modelo econômico que eles implantaram não é uma imagem do futuro do capitalismo, mas sim um reflexo, atrasado em 150 anos, da fase inicial da industrialização europeia. Nem que se desejasse, não haveria como replicar o modelo chinês em praticamente nenhum outro lugar do mundo.

A economia chinesa é produto da necessidade de sobrevivência de uma população que, em meados dos anos 1970, morria de fome aos borbotões. A versão mais encontrada vem no sentido de que a abertura da China para a economia de mercado foi obra de um conjunto de reformas bem planejadas, executadas por Deng Xiaoping a partir de 1978 como reação à grande fome que vitimou cerca de 30 milhões de pessoas. Mas atualmente se compreende que a construção daquele modelo econômico deu-se em grande parte pela aceitação, por parte das autoridades locais, de atos de desobediência praticados por empreendedores que se afastaram do modelo de exploração proposto pelo estado para buscar a eficiência (e os seus frutos). A necessidade de expansão da produção, somada à institucionalização da corrupção local, formou uma teia de pequenos empreendedores marginais, cujo sucesso motivava mais e mais pessoais, que formaram uma irresistível onda capitalista. Ou seja: o modelo econômico chinês é fruto da iniciativa de sua população e não de um bem urdido plano decenal produzido por seus burocratas.

Indo adiante, percebemos que, se a gênese da economia chinesa é consequência de uma situação social inexistente em outros países, sua forma atual também não é verificada em outras economias por seu particularismo no cenário internacional. Se há uma exploração dos trabalhadores (cuja renda chega a ser inferior à das primeiras fases da Revolução Industrial), ela é em grande parte derivada da existência de um gigantesco exército de reserva formado por pessoas dispostas a aceitar o que for necessário para que sua família tenha acesso ao indispensável à sobrevivência. Calcula-se que cerca de 700 milhões de chineses tentem o sustento com menos de 2 dólares por dia. Já o desrespeito ao meio ambiente deriva tanto da corrupção institucionalizada quanto da necessidade de uma expansão da atividade econômica que possa suprir a demanda anual por 24 milhões de novos postos de trabalho. Ou seja: a China não é o modelo do futuro, mas sim o de um passado que deve ser intensamente combatido, o que tenderá a ocorrer quando houver uma razoável transferência da riqueza à população, com o fortalecimento de uma ainda insipiente classe média.

Mas, voltando para a análise dos reflexos da China no futuro da economia mundial, especialmente a ocidental, devemos ainda considerar que a atual estrutura dos mercados, tendente à especialização, fez com que o modelo chinês fosse integrado à ordem econômica mundial, mas não seja passível de replicação em outros locais. Isto porque a manufatura é apenas uma das atividades envolvidas na oferta de um determinado produto ao mercado. Do preço de um bem fabricado no oriente e distribuído para as prateleiras ocidentais, apenas uma pequena fração é destinada ao pagamento de seu custo de produção. A maior parte do valor é direcionada aos distribuidores, aos detentores das marcas e aos responsáveis pelos esforços em publicidade; ou seja, por empresas ocidentais (principalmente a considerar que as marcas chinesas não são bem recebidas pelos mercados ocidentais).

Na cidade de Zhuhai, perto de Hong Kong, está instalado um dos maiores polos de fabricação de calçados em todo o mundo. Lá são produzidos itens sobre os quais são aplicadas marcas famosas, e que depois serão expostos em elegantes vitrines europeias e norte-americanas. Estima-se que do preço de venda destes calçados no máximo 2% sejam empregados com o pagamento dos funcionários que o produziram.

Em média, o pagamento da manufatura de um produto made in China corresponde a 10% de seu preço de venda. O restante é recebido pelo vendedor final, pelos intermediários, pelos detentores das marcas, pelas agências de publicidade e tantos outros agentes que têm por característica comum o fato de atuarem fora da China.

Vale citar mais um exemplo: a Galanz é a maior fábrica de fornos de micro-ondas do mundo. Cerca de 40% dos aparelhos existentes no planeta foram fabricados lá. Mas poucos conhecem a marca, já que a Galanz atua no interesse de empresas estrangeiras, detentoras de marcas de renome mundial que dela encomendam, total ou parcialmente, a atividade de manufatura, concentrando seus esforços nas atividades que geram maiores excedentes; principalmente no desenvolvimento de novas tecnologias.

Podemos então concluir que a China é um agente especializado no cenário econômico mundial. Ocupa, por suas características internas, uma posição centrada na manufatura, com baixo desenvolvimento tecnológico próprio. A regulação das relações trabalhistas é altamente desfavorável aos seus operários, principalmente porque há um grande contingente de cidadãos tentando fugir da miséria da vida no campo. Mas este modelo não pode ser tomado como um exemplo de sucesso econômico por outros países que buscam uma posição de destaque no plano econômico internacional. Assim como as condições que levaram à China atual são muito específicas, o seu papel na ordem econômica não pode, e nem deve, ser intentado por outros países.

A partir da compreensão de que a produção de riqueza não mais advém da exploração da massa trabalhadora, mas decorre principalmente do desenvolvimento de tecnologia, cumpre aos países emergentes (e especialmente aos demais integrantes do BRIC Brasil, Índia e Rússia) encontrar o seu papel no cenário econômico internacional. É o que faz a Índia, que se fixa como polo mundial no desenvolvimento de softwares, e é o que deveria fazer o Brasil. E, para tanto, não há necessidade de tratar nossos trabalhadores como são tratados os operários chineses.

A China continuará a invadir nossas casas com seus produtos, mas não será capaz de exportar seu direito, seja no campo do direito do trabalho, seja no de outras áreas.

Marins Bertoldi

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