Análise da evolução jurisprudencial sobre JCP Extemporâneo no STJ, que favorece contribuintes contra a visão restritiva da Receita Federal, destacando o pendente julgamento do Tema 1.319.
Por Jose Marcello M. Gurgel e Guilherme S. Félix da Silva
Introdução
No contexto do sistema tributário brasileiro, os JCP – Juros sobre Capital Próprio despontam como instrumento relevante de política fiscal-empresarial, viabilizando a remuneração dos investidores e permitindo, sob certos requisitos, sua dedução como despesa financeira para fins de apuração do IRPJ – Imposto de Renda da Pessoa Jurídica e da CSLL – Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Sua instituição buscou corrigir uma distorção estrutural do regime tributário brasileiro, que tradicionalmente privilegiava o endividamento ao permitir dedução de juros pagos a terceiros, mas não reconhecia igual tratamento à remuneração do capital próprio.
O JCP rapidamente se consolidou como elemento estratégico de planejamento tributário, sobretudo em setores intensivos em capital. Entretanto, a ausência de regra legal específica acerca do tratamento do chamado “JCP extemporâneo” – aquele deliberado ou pago em exercício posterior ao da formação dos lucros – intensificou o contencioso administrativo e judicial. Esta lacuna normativa gerou interpretações diametralmente opostas: de um lado, a posição restritiva da Receita Federal e da Procuradoria da Fazenda Nacional; de outro, a compreensão mais ampla defendida pelos contribuintes e gradualmente acolhida pelos tribunais.
Diante deste cenário, o propósito deste artigo é analisar as bases do debate, desde sua origem normativa e natureza jurídica até os efeitos práticos das diferentes leituras do regime de competência e os impactos do julgamento atualmente em curso no STJ sob o Tema 1.319 de recursos repetitivos (REsp 1.941.347/RS). Como será demonstrado, a jurisprudência consolidada do STJ, que tende a ser reafirmada no julgamento do tema repetitivo, reconhece a legitimidade da dedução do JCP extemporâneo, desde que observados determinados requisitos formais e temporais.
O impacto fiscal do JCP: Uma análise comparativa
Antes de adentrarmos na natureza jurídica e no regime normativo do JCP, é fundamental compreender o mecanismo de economia fiscal que torna este instrumento tão relevante para o planejamento tributário empresarial. Para ilustrar de forma clara, analisemos os cenários de distribuição de resultados em uma empresa industrial com lucro anual de R$ 100 milhões.
Cenário 1: Distribuição via Dividendos Tradicionais
Quando uma empresa opta pela distribuição de dividendos convencionais, o fluxo tributário ocorre da seguinte forma:
Lucro contábil apurado: R$ 100 milhões
Incidência de IRPJ (25%) e CSLL (9%): R$ 100 milhões × 34% = R$ 34 milhões
Lucro líquido após tributação: R$ 66 milhões
Valor disponível para distribuição aos acionistas: R$ 66 milhões
Tributação sobre os dividendos recebidos pelos acionistas: R$ 0 (isenção)
Carga tributária total do sistema: R$ 34 milhões
Cenário 2: Distribuição via Juros sobre Capital Próprio
Ao optar pelo JCP, considerando uma distribuição de R$ 30 milhões (dentro dos limites legais da TJLP sobre o patrimônio líquido), o fluxo tributário se altera significativamente:
Lucro contábil apurado: R$ 100 milhões
Dedução do JCP como despesa financeira: R$ 30 milhões
Base de cálculo do IRPJ e CSLL: R$ 70 milhões
Incidência de IRPJ e CSLL: R$ 70 milhões × 34% = R$ 23,8 milhões
Lucro líquido após tributação: R$ 46,2 milhões
Distribuição via JCP (bruto): R$ 30 milhões
Retenção de IR na fonte sobre o JCP: R$ 30 milhões × 15% = R$ 4,5 milhões
Valor líquido recebido pelos acionistas: R$ 25,5 milhões
Valor disponível para distribuição adicional como dividendos: R$ 46,2 milhões
Carga tributária total do sistema: R$ 28,3 milhões (R$ 23,8 milhões + R$ 4,5 milhões)
A utilização do JCP proporciona, portanto, uma economia fiscal expressiva, gerando uma redução de R$ 10,2 milhões na carga tributária direta para a empresa (diferença entre R$ 34 milhões e R$ 23,8 milhões) e uma economia líquida de R$ 5,7 milhões para o sistema empresa-acionista (diferença entre a carga total de R$ 34 milhões no cenário de dividendos e R$ 28,3 milhões no cenário de JCP). Além da vantagem tributária, este mecanismo também melhora o fluxo de caixa, permitindo à empresa manter maior disponibilidade de recursos que podem ser direcionados para reinvestimento ou distribuição adicional aos acionistas.
Esta vantagem tributária significativa explica por que o JCP se tornou um instrumento tão utilizado no planejamento tributário corporativo desde sua introdução pela lei 9.249/1995. A discussão sobre o JCP extemporâneo não questiona a legitimidade desta economia fiscal, mas apenas o momento em que ela pode ser aproveitada: se exclusivamente no ano da formação do lucro ou também em exercícios posteriores, quando ocorre a deliberação tardia do pagamento.
Natureza jurídica e regime normativo do JCP: A hibridez entre despesa dedutível e distribuição de lucros
O JCP nasceu em meio ao movimento de reformas econômicas dos anos 1990, fundamentando-se no entendimento de que o capital investido pelos sócios ou acionistas, ao contrário do que ocorria na tradicional perspectiva do imposto de renda, também carrega um custo de oportunidade. O sistema tributário brasileiro, antes do JCP, não reconhecia tal custo, ocasionando distorção em favor do capital de terceiros, cuja remuneração era dedutível.
O tratamento jurídico do JCP é singular. Para a empresa pagadora, configura despesa financeira, dedutível desde que observados os limites fixados em lei – em especial os parâmetros previstos no art. 9º da lei 9.249/1995 e no art. 347 do Regulamento do Imposto de Renda. Ao mesmo tempo, para o sócio ou acionista, o valor recebido configura rendimento sujeito à tributação exclusiva na fonte, à alíquota de 15%. Observa-se, assim, uma natureza híbrida, um instrumento que proporciona economia fiscal sem renunciar à incidência tributária sobre os beneficiários, o que lhe confere neutralidade e rompe com o antigo viés pró-endividamento.
O enquadramento dessa figura, porém, exige cumprimento rigoroso de requisitos quantitativos – limites atrelados à TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo e frações do lucro líquido ajustado -, além de formalidades como deliberação societária válida e contabilização correta do lançamento, com individualização dos créditos aos beneficiários.
A TJLP, elemento central no cálculo do JCP, funciona como parâmetro máximo para a remuneração do capital próprio, sendo aplicada pro rata dia sobre as contas do patrimônio líquido. Este mecanismo busca equiparar o custo do capital próprio ao custo médio do capital de terceiros de longo prazo na economia brasileira, garantindo a neutralidade fiscal pretendida pelo legislador.
O problema do JCP Extemporâneo: Definição e impactos práticos
O ponto central da controvérsia reside na possibilidade de deduzir, como despesa, o JCP calculado sobre lucros de exercícios anteriores àquele da deliberação e/ou pagamento. Não são raros os casos em que, por razões diversas, a decisão de distribuir tais valores ocorre apenas após o encerramento do exercício em que se geraram os lucros, muitas vezes em razão de apurações mais refinadas ou de estratégias empresariais. Nessas hipóteses, as empresas buscam deduzir o JCP como despesa financeira, inclusive mediante retificação das obrigações acessórias, como a ECF – Escrituração Contábil Fiscal.
Para ilustrar o impacto prático da questão, considere-se o seguinte exemplo: uma indústria de autopeças, fornecedora de componentes para montadoras nacionais e internacionais, apurou lucro de R$ 50 milhões em 2019, com patrimônio líquido médio de R$ 320 milhões. Com o advento da pandemia de COVID-19 no início de 2020, que paralisou temporariamente a indústria automotiva e gerou profunda incerteza econômica, a empresa optou por uma postura conservadora, suspendendo a distribuição de JCP que havia planejado. Somente em setembro de 2021, após a retomada gradual do setor e com maior clareza sobre sua posição financeira, a companhia deliberou a distribuição de JCP no valor de R$ 18 milhões, calculado sobre o patrimônio líquido de 2019 e respeitando os limites legais da TJLP. Considerando as alíquotas combinadas de IRPJ/CSLL de 34%, a dedutibilidade desse valor representaria uma expressiva economia fiscal de R$ 6,12 milhões. A controvérsia está em definir se essa dedução deve ocorrer no ano da formação do lucro (2019), exigindo retificação da ECF, ou no ano da deliberação (2021) – decisão que impacta significativamente o fluxo de caixa, os indicadores financeiros e o planejamento tributário da companhia em um período de recuperação pós-pandemia.
Sob a ótica da fiscalização, que adota a interpretação restritiva, a dedução desses R$ 18 milhões em 2021 seria considerada indevida. A consequência direta seria a glosa integral dessa despesa, com o consequente aumento da base de cálculo do IRPJ e da CSLL no exercício de 2021. O impacto financeiro potencial seria significativo:
Adicional de IRPJ/CSLL: R$ 18.000.000,00 (despesa glosada) x 34% (alíquota combinada) = R$ 6.120.000,00
Multa de Ofício: Sobre o adicional de tributo apurado, incidiria a multa de ofício, que pode variar de 75% a 150% (em casos qualificados, como suposta sonegação). Considerando a alíquota de 75%, a multa seria de R$ 6.120.000,00 x 75% = R$ 4.590.000,00. Em casos de multa qualificada (150%), o valor seria de R$ 6.120.000,00 x 150% = R$ 9.180.000,00.
Juros Selic: Além do tributo e da multa, incidiriam juros de mora (Taxa Selic) desde a data original de vencimento do tributo (ou da data do evento, conforme a interpretação fiscal) até a data do efetivo pagamento. Este valor pode ser substancial, dependendo do tempo decorrido.
O impacto financeiro total potencial, apenas considerando o adicional de tributo e a multa de 75%, seria de R$ 10.710.000,00 (R$ 6.120.000,00 + R$ 4.590.000,00), sem contar os juros Selic. Este cenário evidencia o elevado risco fiscal associado à dedução do JCP extemporâneo sob a ótica da Receita Federal e a importância de uma definição clara sobre o tema.
A complexidade surge porque a legislação não define de modo expresso o limite temporal para essa dedução, gerando três grandes indagações: (i) é possível deduzir o JCP sobre lucros de exercícios anteriores?; (ii) em caso positivo, em qual período tal dedução deve ser realizada – naquele em que se formaram os lucros ou naquele em que se deliberou o pagamento?; e (iii) quais requisitos formais são indispensáveis nessa hipótese?
A insegurança jurídica daí decorrente impacta de forma direta o planejamento tributário das empresas e alimenta disputas administrativas e judiciais que podem envolver valores bastante significativos, interferindo, inclusive, na gestão empresarial e na previsibilidade dos custos tributários.
Interpretação restritiva da Receita Federal: Evolução e fundamentos
A Receita Federal consolidou, nos últimos anos, interpretação restritiva quanto à dedutibilidade do JCP extemporâneo. É o que consta na solução de consulta COSIT 329/14, bem como no art. 75 da instrução normativa RFB 1.700/17, que tem a seguinte previsão:
Art. 75. Para efeitos de apuração do lucro real e do resultado ajustado a pessoa jurídica poderá deduzir os juros sobre o capital próprio pagos ou creditados, individualizadamente, ao titular, aos sócios ou aos acionistas, limitados à variação, pro rata die, da TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo e calculados, exclusivamente, sobre as seguintes contas do patrimônio líquido:
(.)
§ 4º A dedução dos juros sobre o capital próprio só poderá ser efetuada no ano-calendário a que se referem os limites de que tratam o caput e o inciso I do § 2º. (grifou-se)
Ao adotar essa interpretação, a administração tributária amplia, sem respaldo legal evidente, restrição que atinge a capacidade de planejamento das empresas e gera litígios que poderiam ser evitados por uma leitura mais aderente à lógica tanto do regime de competência quanto da natureza híbrida do JCP.
Cabe ressaltar que, dentro da própria estrutura do CARF, o entendimento aplicado acerca da possibilidade de dedução do JCP extemporâneo apresentou contradição – nos momentos em que o voto de qualidade vigorou a favor do contribuinte, algumas empresas obtiveram procedência nos seus pedidos quanto à dedução pretérita, ao passo que, em 2023, com a volta do voto de qualidade pró-fisco, os resultados retornaram a ser negativos ao contribuinte.
Jurisprudência administrativa: Oscilações no CARF
A análise dos julgados do CARF revela a instabilidade interpretativa sobre o tema, com decisões que variam conforme a composição das turmas e a aplicação do voto de qualidade, evidenciando a divisão técnica sobre o tema.
Destacam-se os seguintes precedentes:
Favorável ao Contribuinte: “A dedução dos juros sobre o capital próprio do Lucro Real não está submetida, condicionada ou limitada ao regime de competência, podendo ser feita a redução tais valores da monta do lucro tributável após deliberação pelo seu pagamento ou creditamento, ainda que referentes a períodos anteriores. O art. 9º da lei 9.249/95, único dispositivo legal que rege a dedução de tal rubrica, apenas exige a apuração lucros pela entidade, computados antes da dedução dos juros, ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior ao valor de duas vezes os juros a serem pagos ou creditados […]” (CARF: Acórdão nº 9101-005.757; Relator: Fernando Brasil de Oliveira Pinto; 1ª Turma/CSRF; Data: 03/09/2021)
Contrário ao Contribuinte: “JUROS SOBRE CAPITAL PRÓPRIO. FACULDADE SUJEITA AO REGIME DE COMPETÊNCIA E A CRITÉRIOS TEMPORAIS. DEDUÇÃO EM EXERCÍCIOS POSTERIORES. VEDAÇÃO. 1 – O pagamento ou crédito de juros sobre capital próprio a acionista ou sócio representa faculdade concedida em lei, que deve ser exercida em razão do regime de competência. Incabível a deliberação de juros sobre capital próprio em relação a exercícios anteriores ao da deliberação, posto que os princípios contábeis, a legislação tributária e a societária rejeitam tal procedimento […]” (CARF: Acórdão nº 9101-006.959; Relatora: Edeli Pereira Bessa; 1ª Turma/CSRF; Data: 09/05/2023)
Fundamentos jurídicos em defesa da dedutibilidade
Do ponto de vista dos contribuintes, a inexistência de restrição temporal na legislação é inequívoca. Uma exegese acurada do art. 9º da lei 9.249/1995 revela que o legislador optou deliberadamente por não estabelecer limitação temporal para a dedução dos JCP. Esta ausência não configura omissão, mas decisão consciente alinhada com os princípios da autonomia empresarial e da livre iniciativa, consagrados constitucionalmente nos arts. 1º, IV e 170 da Constituição Federal.
A natureza jurídica dos JCP é determinante para a adequada aplicação do seu regime tributário. O §7º do artigo 9º da lei 9.249/1995 estabelece uma equiparação legal entre os JCP e os dividendos, refletindo sua natureza híbrida. Como ensina Luís Eduardo Schoueri, “os juros sobre o capital próprio têm natureza híbrida: do ponto de vista do pagador, são despesa dedutível; do ponto de vista do beneficiário, equivalem a dividendos”.
Considerando que uma empresa pode distribuir dividendos referentes a lucros acumulados de exercícios anteriores sem restrição temporal (conforme art. 201 da lei 6.404/1976), a mesma lógica deve ser aplicada aos JCP. Esta equiparação não é meramente formal, mas substantiva, reconhecendo a finalidade do instituto de neutralizar a diferença de tratamento entre capital próprio e de terceiros.
O regime de competência, previsto no art. 177 da lei 6.404/1976, exige que as mutações patrimoniais sejam registradas no momento em que ocorrem. Nesse contexto, no caso específico dos JCP, o evento que efetivamente gera a obrigação de pagar é a deliberação societária, não a mera apuração do lucro que compõe sua base de cálculo.
A decisão sobre o pagamento dos JCP possui caráter declaratório, reconhecendo uma situação patrimonial preexistente. Ressalte-se que, antes dessa deliberação, inexiste obrigação jurídica, prevalecendo mera expectativa de distribuição. O CPC 00 – Comitê de Pronunciamentos Contábeis, por meio da resolução CFC 1.374/11, corrobora este entendimento ao estabelecer que o regime de competência retrata os efeitos das transações nos períodos em que são produzidos, ainda que os recebimentos e pagamentos em caixa derivados ocorram em períodos distintos.
A dedução dos JCP em exercício posterior não viola o regime de competência, desde que o reconhecimento contábil ocorra no momento da deliberação. Esta interpretação reflete com fidedignidade a realidade financeira da empresa e atende aos princípios fundamentais da contabilidade.
Importante ressaltar ainda que esta dedução não acarreta prejuízo ao Erário, representando mero diferimento do benefício fiscal. O Fisco não sofre perda de receita, apenas a arrecada em momento distinto, em consonância com a realidade econômica da empresa e com os princípios de eficiência econômica e justiça fiscal.
As tentativas de restringir a dedução dos JCP por meio de atos infralegais extrapolam os limites do poder regulamentar da administração tributária. Conforme jurisprudência consolidada do STF, atos administrativos não podem inovar na ordem jurídica, criando restrições não previstas em lei.
Evolução jurisprudencial do STJ: Consolidação da tese favorável
O STJ, a Corte responsável por uniformizar a interpretação da legislação federal, tem construído, de forma consistente e reiterada, um entendimento favorável aos contribuintes no que tange à dedutibilidade do JCP extemporâneo. A tese central firmada pela Corte Cidadã reconhece a inexistência de necessidade de simultaneidade entre o exercício em que se formam os lucros e aquele em que se delibera e se paga o JCP.
Essa orientação jurisprudencial remonta a precedentes antigos, como o REsp 1.086.752/PR (julgado em 2009, sob relatoria do min. Francisco Falcão), que já sinalizava que a deliberação realizada até a entrega da declaração de ajuste anual (hoje ECF) do ano-base de apuração permitiria o reconhecimento e a dedução do JCP, ainda que a base de lucros fosse de períodos imediatamente anteriores.
Desde então, diversos julgados de ambas as Turmas de Direito Público do STJ (Primeira e Segunda Turmas) têm reforçado essa visão, afastando as teses restritivas da administração tributária e consolidando a compreensão de que, observados os limites e requisitos formais previstos em lei, a dedução do JCP extemporâneo é legítima e não ofende a legislação vigente, incluindo o regime de competência.
A consistência da jurisprudência do STJ sobre a possibilidade de dedução do JCP extemporâneo pode ser observada nos seguintes julgados representativos:
Reconhecendo a licitude da dedução a partir de 1997, mesmo para exercícios anteriores: “A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está pacificada no sentido de que é lícita, a partir do ano calendário 1997, a dedução dos juros sobre capital próprio mesmo em relação a exercícios anteriores àquele em que realizado o lucro da pessoas jurídica.” (AgInt no REsp 1971537/SP, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, Primeira Turma, julgado em 20/06/2023, DJe 17/08/2023).
Afirmando que a legislação não impõe a dedução no mesmo exercício do lucro: “As duas Turmas que compõem a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça firmaram entendimento no sentido de que, a partir de 1997, tendo em vista a legislação não impor que a dedução dos juros sobre capital próprio deva ser feita no mesmo exercício financeiro em que realizado o lucro da empresa, pode ela ser efetuada em ano-calendário futuro.” (AgInt no REsp 2105094/PE, Rel. Ministro SÉRGIO KUKINA, Primeira Turma, julgado em 15/04/2024, DJe 18/04/2024).
Reiterando a legitimidade da dedução de JCP relacionados a exercícios anteriores: “II. Esta Corte tem posicionamento consolidado segundo o qual é legítimo, a partir do ano calendário 1997, deduzir do Importo de Renda Pessoa Jurídica – IRPJ e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CSLL, os juros sobre capital próprio, mesmo os relacionados a exercícios anteriores àquele em que realizado o lucro da pessoa jurídica.” (AgInt no REsp n. 2.146.879/MS, Rel. Ministra REGINA HELENA COSTA, Primeira Turma, julgado em 15/04/2024, DJe 18/04/2024).
Sendo categórica quanto à ausência de limitação temporal na lei: “A legislação – notadamente o art. 9º, da lei 9.429/1995 – não impõe limitação temporal para a dedução de Juros sobre Capital Próprio – JCP referentes a exercícios anteriores.” (REsp 1971524/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Segunda Turma, julgado em 03/10/2023, DJe 11/10/2023).
Reafirmando o entendimento e a ausência de burla ao regime de competência: “1. A questão controvertida (limitação temporal para a dedução de Juros sobre o Capital Próprio de exercícios anteriores) foi apreciada em momento recente pela Segunda Turma do STJ, por ocasião do julgamento, na sessão de 22.11.2022, do REsp 1.955.120/SP e do REsp 1.946.363/SP. 2. O órgão turmário, por ampla maioria, reafirmou precedente antigo, e concluiu que a legislação tributária determina textualmente que a pessoa jurídica pode deduzir os Juros sobre Capital Próprio do lucro real e resultado ajustado, no momento do pagamento a seus sócios/acionistas, impondo como condição apenas a existência de lucros do exercício ou de lucros acumulados e reservas de lucros, em montante igual ou superior a duas vezes os juros a serem pagos ou creditados, não havendo burla ao limite legal de dedução do exercício ou ao regime de competência.” (AgInt no REsp n. 1.951.674/SP, Rel. ministro HERMAN BENJAMIN, Segunda Turma, julgado em 27/03/2023, DJe 03/05/2023).
Destacando a natureza facultativa do pagamento e a ausência de burla aos limites legais: “2. O pagamento de juros sobre capital próprio não é sujeito a periodicidade alguma (tanto menos coincidente com exercícios tributários) e configura faculdade da empresa, inexistindo obrigatoriedade de distribuição (diferentemente do regramento dos dividendos, por exemplo). Para apuração do Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), se o contribuinte for tributado pelo regime do lucro real, os juros sobre capital próprio devem ser registrados contabilmente como receita financeira, não possuindo natureza de lucro ou de dividendo. 3. O pagamento de juros sobre capital próprio referente a exercícios anteriores não representa burla ao limite legal de dedução do exercício, desde que, ao serem apurados, tomando por base as contas do patrimônio líquido daqueles períodos com base na variação pro rata die da TJLP sobre o patrimônio líquido de cada ano, o pagamento seja limitado ao valor correspondente a 50% do lucro líquido em que se dá o pagamento ou a 50% dos lucros acumulados e reservas de lucros”. (AgInt no REsp n. 1.939.282/CE, Rel. ministro HUMBERTO MARTINS, Segunda Turma, julgado em 27/03/2023, DJe 03/05/2023).
Esses precedentes demonstram a uniformidade de entendimento entre as Turmas de Direito Público do STJ, que reconhecem a legalidade da dedução do JCP referente a exercícios anteriores, desde que observados os limites e requisitos legais no momento da deliberação e pagamento.
Perspectivas e cenário no julgamento do Tema 1.319
Diante da consolidada jurisprudência das Turmas de Direito Público, a afetação do Tema 1.319 pelo rito dos recursos repetitivos representa o passo final para a pacificação definitiva da questão no âmbito do STJ. Nesse julgamento, a 1ª Seção deverá formalizar o entendimento já prevalecente, estabelecendo uma tese vinculante sobre a dedutibilidade do JCP extemporâneo e os requisitos temporais e formais necessários para sua aceitação, incluindo a possibilidade de dedução mediante retificação da ECF.
A questão submetida a julgamento no REsp 1.941.347/RS, sob relatoria do ministro Paulo Sérgio Domingues, está assim delimitada: “Possibilidade de dedução de valores pagos a título de JCP – Juros sobre Capital Próprio em exercícios anteriores, por meio de declaração retificadora, quando comprovado o cumprimento dos requisitos legais previstos no art. 9º da lei 9.249/1995.”
O cenário mais provável é de confirmação do entendimento favorável aos contribuintes. Isso se deve, em grande parte, ao fato de que a maioria dos atuais integrantes da 1ª Seção já consignou expressamente a legitimidade da dedução do JCP extemporâneo em precedentes anteriores. Apenas os Ministros Marco Aurélio Bellizze e Paulo Sérgio Domingues (relator) ainda não relataram decisões anteriores sobre o tema na Seção, mas a forte inclinação da Corte aponta para a prevalência da tese favorável aos contribuintes.
De acordo com o calendário divulgado pelo STJ, a conclusão do julgamento está prevista para o segundo semestre de 2025, com possibilidade de definição da tese ainda no primeiro semestre, considerando o avançado estágio de análise da matéria. A expectativa é que este julgamento ponha fim à insegurança jurídica, proporcionando maior previsibilidade às empresas no planejamento tributário.
Conclusão
A disputa sobre o JCP extemporâneo exemplifica a tensão contínua entre a ânsia restritiva administrativa e o imperativo de planejamento seguro para as empresas. Conforme demonstrado, não se observa, na legislação, vedação à dedutibilidade do JCP deliberado após o exercício de formação dos lucros. Ao contrário, os fundamentos jurídicos, normativos e contábeis amparam sua dedução, entendimento que já foi solidamente construído pela jurisprudência do STJ e tende a ser formalmente reafirmado com o julgamento do Tema 1.319.
A provável confirmação da tese favorável aos contribuintes terá impactos significativos para o planejamento tributário empresarial. As empresas poderão, com maior segurança jurídica, deliberar sobre a distribuição de JCP com base em lucros de exercícios anteriores, deduzindo-os no período da deliberação ou, mediante retificação, no período de formação dos lucros. Esta flexibilidade permitirá melhor adequação do fluxo de caixa às necessidades de remuneração dos investidores, sem prejuízo da economia fiscal proporcionada pelo instituto e mitigando o elevado risco fiscal hoje existente sob a ótica da Receita Federal.
Públicado em https://www.migalhas.com.br/depeso/431458/jcp-extemporaneo-perspectivas-para-julgamento-do-tema-1-319-no-stj – 02 de junho de 2025.
Referências:
ÁVILA, Humberto. Teoria da Segurança Jurídica. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2019.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019.
CARVALHOSA, Modesto. Comentários à Lei de Sociedades Anônimas. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 41ª ed. São Paulo: Malheiros, 2020.
OLIVEIRA, Ricardo Mariz de. Fundamentos do Imposto de Renda. São Paulo: Quartier Latin, 2020.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Juros sobre Capital Próprio: Natureza jurídica e forma de apuração diante da ‘nova contabilidade’. In: MOSQUERA, Roberto Quiroga; LOPES, Alexsandro Broedel (Coord.). Controvérsias jurídico-contábeis: aproximações e distanciamentos. São Paulo: Dialética, 2012.
XAVIER, Alberto. Tipicidade da tributação, simulação e norma antielisiva. São Paulo: Dialética, 2002.
Epa! Vimos que você copiou o texto. Sem problemas, desde que cite o link: https://www.migalhas.com.br/depeso/431458/jcp-extemporaneo-perspectivas-para-julgamento-do-tema-1-319-no-stj