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Julgar não é legislar

Publicado em: 02 mar 2008

Dia desses deparei com um despacho em que o juiz deixava de aplicar os benefícios da justiça gratuita. Mas o fundamento da decisão não era o descumprimento dos requisitos legais para a concessão do benefício. O juiz não concedeu a assistência judiciária porque não achava certo que uma parte tivesse o direito de produzir provas sem ter que arcar com os seus custos. O magistrado não discordava da pretensão deduzida pela parte, mas sim da lei. E afastou a lei.

Em muitos outros casos, normas infraconstitucionais são deixadas de lado por meio de interpretações particulares de certos princípios constitucionais. É o caso do muito invocado princípio da dignidade da pessoa humana, ou mesmo da afirmação da função social do direito.

Os princípios constitucionais devem orientar toda a aplicação do direito. Isso não se discute. O problema surge no momento em que estes princípios são sobrepujados pela interpretação que deles se tem. Muitas vezes não se está a proteger a dignidade da pessoa humana, ou a função social do direito, mas sim uma interpretação pessoal e específica, que se utiliza de uma formulação constitucional genérica para fundamentar a ideia que se tem sobre a forma de sua aplicação.

O mesmo princípio pode ser utilizado para que se chegue a conclusões diversas, por vezes contrapostas. Nestes casos, é a interpretação que prevalece, e não o princípio em si.

Quando esta lógica é utilizada para afastar norma infraconstitucional, autoriza-se um processo em que o direito não deriva das leis democraticamente aprovadas, mas sim do bom senso do julgador, conformado por sua orientação ideológica e por suas convicções pessoais, e que, por mais apurado que seja, não substitui a vontade popular.

Decisões assim fundamentadas não são um fenômeno recente. Todos lembramos da escola do direito alternativo, concebida por magistrados e juristas gaúchos no início da década de 1990. Também não são decisões desprovidas de suporte em parte da doutrina atual. Vários são os juristas, nacionais e estrangeiros, que propõem uma atuação forte do Judiciário no sentido da criação de um estado social de direito, mesmo que a lei represente um obstáculo à consecução deste objetivo.

Além de contar com suporte doutrinário, esta forma de aplicação do direito ganha ares de legitimidade em decorrência da simpatia que as decisões assim proferidas geram ao leitor superficial. Afinal, elas contêm uma aura de realização de justiça social.

Mas esta postura deve ser submetida a uma análise crítica que vá um pouco além do senso de justiça no âmbito de uma determinada lide. Há que se considerar os efeitos sociais de tais decisões, analisando seus efeitos para além da relação processual que se coloca à frente do magistrado.

Ao se autorizar um julgador a afastar uma lei por considerá-la injusta, estaremos concedendo-lhe o poder legislativo, com o agravante não termos escolhido nossos juízes por meio do voto.

Pode-se afirmar que o Poder Legislativo brasileiro não apresenta nenhum primor de técnica jurídica. Aliás, faço coro com este discurso. Mas esta infeliz realidade não autoriza nenhum juiz a chamar para si a tarefa de legislar.

Para além de qualquer discurso no sentido da necessidade de respeitar a tripartição de poderes, há dois bons argumentos para desencorajar esta assunção de tarefas por parte do Judiciário. Em primeiro lugar deve-se recordar que a segurança jurídica é um valor essencial em qualquer estado democrático de direito. E este valor pode se perder com a substituição do direito posto pelo senso de justiça detido por um magistrado, principalmente porque o senso de justiça parte de valores individuais e variáveis. O justo para uns não o é para outros, sem que se perca a coerência de cada conclusão.

Uma lei ultrapassada, ou desvinculada de seus fins sociais, deve ser revista, e não negada. Cabe à sociedade civil, à academia, aos órgãos de classe, e à própria magistratura, fomentar o debate para a modernização das leis, com ampla participação democrática.

O oposto deste processo é a outorga a uma pessoa do poder de manter ou revogar leis, de acordo com suas convicções pessoais, formando-se um quadro a se pode chamar de despotismo, ou de tirania; ambos merecedores de rejeição.

Não interessa o quão bem intencionado esteja o indivíduo a quem se confira o poder de vida ou morte das leis. Mesmo que ele acredite estar assim promovendo a justiça social, não terá condições de compreender que estará fazendo a justiça social de acordo com o seu conceito de justo. Ainda que seja uma pessoa com altíssima formação intelectual, conduta ilibada e ética consistente, ela não substitui o Poder Legislativo, por piores que sejam seus integrantes.

Por fim, há que se considerar uma triste possibilidade. Ao se ampliar os poderes dos juízes, a ponto de se autorizar a simples desconsideração de um texto legal em nome da justiça, abre-se margem ao abuso.

Vale, então, a lembrança a Rousseau, quando dizia que o direito é um mal necessário. Por mais falhas que o nosso ordenamento jurídico possa ter, não podemos nunca esquecer que um estado sem segurança jurídica é um ambiente pouco favorável ao desenvolvimento social.

Marins Bertoldi

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