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O mercado não é o inimigo

Publicado em: 06 abr 2008

A janela de nossos carros nos apresenta uma realidade angustiante. A miséria está tão presente em nosso cotidiano que aos poucos se transforma em uma paisagem comum. Passamos pela fome alheia como quem ignora um outdoor que não nos atrai o olhar. Mas a fome não poderia ser ignorada. Aqueles que a sofrem são pessoas, assim como nossos pais, assim como nossos filhos. E a fome, para aqueles que conseguem imaginá-la, é cruel.

São poucos os que não se omitem diante deste quadro. Mas de sua luta depende um futuro mais justo.

Aqueles que não se omitem naturalmente agem movidos pela emoção. Reagem. E, premidos pela emoção, descarregam sua angústia no inimigo mais visível: a economia de mercado. Ela seria a responsável pela exploração dos fracos, pelos desvios do consumismo, pelo individualismo e por todos os subprodutos da ganância. Debaixo desta premissa, o combate à economia de mercado (ou à ordem capitalista, como queira), tornou-se o discurso de base daqueles que buscam a redução das injustiças sociais.

Esta ordem de reação é legítima. Mas, década após década, produziu poucos resultados concretos. As estatísticas econômicas demonstram uma sensível diminuição no percentual da população mundial que vive abaixo da linha da pobreza. Estima-se que 1,5 bilhão de pessoas tentavam a sobrevivência com menos de 1 dólar por dia em 1981. Em 2001, os extremamente pobres eram 1,1 bilhão de pessoas. Trata-se de uma retração significativa nos níveis de pobreza, especialmente a se considerar o aumento da população mundial nestas duas décadas. Mas estes resultados não podem ser creditados à postura acadêmica de combate ao mercado. Eles são decorrência da evolução da economia de mercado. O inimigo declarado foi o agente promotor do objetivo desejado.

Deste quadro, surge a questão: a redução das injustiças sociais será fruto da negação ou do aperfeiçoamento da economia de mercado?

Um dos poucos que não se omitem no combate à injustiça social é o economista norte-americano Jeffrey Sachs. Sua obra mais conhecida (O Fim da Pobreza) é um projeto de eliminação da pobreza extrema (até um dólar per capita ao dia), em nível mundial, até o ano de 2.015. Para o autor, este resultado não é uma ficção, e advirá do estímulo ao desenvolvimento da economia de mercado.

Baseado em muita estatística, e em uma experiência profissional que envolveu o assessoramento econômico à Bolívia, à Polônia, à Rússia, à Índia, à China e, na última década, aos mais pobres dos países africanos, Jeffrey Sachs parte da premissa de que “o desenvolvimento econômico não é um jogo de soma zero, em que os ganhos de alguns são inevitavelmente espelhados pelas perdas de outros. Neste jogo, todos podem vencer.” Ou seja: os frutos da economia de mercado geram os recursos necessários para a promoção das políticas sociais. Não se trata de retórica. Quatrocentos milhões de pessoas, em vinte anos, saíram da miséria por viverem em países que estimularam o desenvolvimento econômico interno.

Angus Maddison, em seu estudo The World Economy: A Millenial Perspective apresenta um grande volume de dados econômicos históricos que evidenciam o crescimento exponencial da renda per capita global desde a efetiva implantação do sistema de mercado (que, para o autor, ocorreu na Europa a partir de 1820). O historiador econômico também demonstra, empiricamente, que o desenvolvimento tecnológico é o grande responsável pela geração de riqueza, afastando a tese marxista da concentração de riquezas como resultado primordialmente da exploração do trabalho alheio.

Ainda que no ambiente universitário seja sempre simpática a defesa do ideário socialista, estamos convictos de que esta não mais é uma alternativa viável. Quem percebeu mais claramente este fato foi Fernando Henrique Cardoso, autor da teoria da dependência, que governou em busca de fundamentos econômicos absolutamente opostos aos que pregava em suas aulas.

A premissa fundamental da abordagem marxista da história mostrou-se equivocada. A mais valia não advém da exploração do trabalho, mas de uma série de outros elementos econômicos, que envolvem especialmente o desenvolvimento de tecnologia. Para Jeffrey Sachs, “a tecnologia foi a principal força por trás dos aumentos de longo prazo na renda do mundo rico, não a exploração dos pobres”.

Não foi por acaso que a experiência socialista revelou-se um fracasso. Suas políticas públicas mostraram-se absolutamente ineficientes. As mazelas da economia de mercado foram mantidas (e em certos casos aprimoradas), com a essencial distinção de o poder estar centralizado nas lideranças da estrutura burocrática, cuja ascendência pouco decorria de méritos pessoais. Por tais razões, Arnaldo Jabor afirmou nesta semana, em análise da atual transição de poder em Cuba, que o sonho de uma sociedade justa e igualitária não produziu mais do que pesadelos.

Afastada a alternativa socialista, pode-se vislumbrar a economia de mercado como algo a ser combatido ou algo a ser estimulado. A defesa de um sistema de mercado é tradicionalmente combatida nos ambientes acadêmicos, por ser considerada uma opção direitista, retrógrada e tendente à manutenção das desigualdades sociais. A postura consciente seria a de combate à estrutura econômica geradora de injustiças inaceitáveis; ou seja, uma postura anticapitalista.

Como já afirmamos, os ataques retóricos à economia de mercado são simpáticos, mas ineficientes. Se o desejo é a redução das desigualdades e a diminuição dos níveis de pobreza, parece-nos mais lógico trabalhar na busca de uma maior eficiência do sistema de mercado. Se o mecanismo apresenta falhas, é mais eficiente consertá-lo do que descartá-lo em busca de um substituto que nunca foi testado com êxito.

Com base tais premissas, Michael Edwards (diretor do Programa de Governança e Sociedade Civil da Ford Foundation) afirma que “não há nada na história para sugerir que o capitalismo é algo além de divisório, sujo e desigual, por mais avanços materiais e tecnológicos que ele traga. Todavia, as alternativas que experimentamos acabaram se mostrando ainda piores (como economias centralmente planejadas) e as outras a cujo respeito ainda falamos (como a autossuficiência cooperativa) carecem de base de apoio para serem postas em prática. Por isso, resta-nos a tarefa de humanizar o capitalismo, ou seja, preservar o dinamismo dos mercados, o comércio e a energia empreendedora, ao mesmo tempo em que procuramos maneiras melhores de distribuir o excedente que eles geraram e remodelar os processos que o produzem.”

Ainda mais incisivo foi Max Weber, em seu clássico A Ética Protestante do Capitalismo, ao defender, ainda no século XIX (quando eram muito mais agudas as tensões entre capitalismo e socialismo), que os desvios egoísticos de busca incessante pelo lucro não são uma característica do capitalismo, mas sim do homem. Para o sociólogo alemão, “o impulso para o ganho, a percepção do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem, em si mesmo, nada a ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos etc… Pode-se dizer que tem sido comum a toda sorte e condições humanas em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de que essa ideia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente.”

É evidente que a economia de mercado apresenta desvios de aplicação. Em qualquer sistema eles existem, e devem ser eficazmente combatidos. Mas, com todas as falhas da economia de mercado, este é o sistema objetivamente mais eficiente na geração de riquezas, fato obviamente necessário para a implantação de políticas sociais. Se houver outras soluções eficientes, será possível considerá-las como alternativas de estruturação econômica. Mas, nas obras que atacam a economia de mercado, pouco encontramos para além das críticas desvinculadas de alternativas viáveis. Por tal razão, ainda que conscientes dos desvios inerentes à espécie humana e da pouca simpatia que a economia capitalista gera, defendemos a necessidade de garantir um sólido desenvolvimento da economia de mercado como caminho eficiente à implantação das políticas sociais.

Os desvios ocorridos na economia de mercado são perniciosos. Mas eles são menos uma consequência natural deste sistema econômico do que um subproduto da ignorância. A submissão ao consumismo é essencialmente negativa, mas floresce com muito mais vigor onde predomina a superficialidade da educação, em todos os estratos socioeconômicos. A impunidade aos crimes corporativos diminui na proporção do conhecimento dos fatos e de suas consequências pela população, principalmente quando esta tem condição de votar de forma consciente, elevando a maturidade da democracia e a solidez das instituições (fatos que, de sobra, diminuem a margem às práticas de corrupção).

Se reunirmos aquilo que mais revolta causa em uma análise consciente da forma de vida do século XXI, poderemos perceber que não se tratam de frutos do capitalismo, mas sim de inevitáveis consequências da ignorância. É a ignorância, e não a economia de mercado, o inimigo a ser combatido. E a reversão deste quadro é um processo lento, cujo primeiro passo é conhecido e confirmado pela experiência histórica: um investimento maciço em educação de base, durante pelo menos duas décadas.

Talvez esta proposta pareça um sonho distante, especialmente quando consideramos os interesses eleitoreiros na fácil conversão da ignorância em votos. Mas os sonhos não seriam sonhos se um dia não pudessem se tornar realidade. E esta realidade já foi construída em outros países, onde os discursos não foram simplesmente lançados ao ar, em busca de aplausos; ao contrário, transformaram-se em um conjunto de ações eficientes contra um inimigo bem identificado.

Marins Bertoldi

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