Por Nicolle Francine Bigochinski Lima
É notável que a inteligência artificial (IA) se destaca como uma das inovações mais transformadoras dos últimos anos. Seu impacto já é sentido em diversos setores da sociedade, como indústria, saúde, educação e serviços, alterando profundamente a forma como pessoas e empresas interagem com a tecnologia e com si mesmas.
Diante do crescimento acelerado do setor e do uso da IA não apenas pelas empresas, mas também e, principalmente, pela população, o direito e o sistema tributário precisam acompanhar o desenvolvimento da IA para garantir que os avanços tecnológicos sejam regulados de forma eficiente e justa, sem perder de vista os interesses econômicos e sociais.
Sendo assim, para compreendermos as implicações tributárias em face da IA, especialmente em um período de transição no Brasil, importante esclarecer qual a interpretação atual dada a esta ferramenta.
Conceito da Inteligência Artificial: PL 2.338/2023 e entendimento do Supremo Tribunal Federal
A classificação da IA e outras tecnologias ainda é um desafio no Brasil, afinal, há quem defenda ser serviço, outros entendem como um produto e, se não o bastasse, também é levantada a hipótese de ser uma nova categoria.
A confusão é compreensível, tendo em vista que a IA pode ser licenciada como um software ou atuar como um serviço contínuo de análise de dados, personalização e entrega de soluções. A depender da forma como é contratada, ela pode simular uma licença de uso, configurar uma prestação de serviço ou até representar uma espécie de permuta não monetária, nos casos em que o usuário fornece dados em troca do acesso gratuito à plataforma.
Nesta perspectiva, o Projeto de Lei 2.338/2023, que está em tramitação no Congresso Nacional, é um esboço dessas primeiras tentativas em se regularizar a IA, apresentando uma definição expressa para tais sistemas.
Segundo o artigo 4º do projeto em discussão, um sistema de IA é um sistema baseado em máquina que, com diferentes níveis de autonomia, utiliza dados para gerar resultados como previsões, recomendações, conteúdo ou decisões que podem influenciar ambientes virtuais, físicos ou reais. Essa definição ressalta o caráter dinâmico e autônomo das soluções de IA, capazes de operar em diversos contextos e com múltiplas aplicações.
Outro ponto relevante do projeto é a criação de categorias para sistemas de IA, incluindo a classificação de sistemas “de alto risco”, que exigem medidas rigorosas de governança, avaliação de impacto e transparência. E ainda que o PL não estabeleça expressamente benefícios fiscais específicos para o setor, já prevê a implementação de “sandboxes regulatórios”, ambientes controlados que permitiriam o desenvolvimento experimental de soluções tecnológicas sob condições regulatórias simplificadas, reduzindo custos e incertezas.
Todavia, enquanto o Brasil permanece sem a vigência de uma lei regulatória, por sua vez, o Supremo Tribunal Federal (STF) apresenta um papel fundamental na complementação das lacunas legislativas, inclusive com a definição da tributação sobre operações envolvendo software e tecnologia digital.
Neste sentido, por cerca de 20 anos, o STF entendeu que softwares comercializados configuravam mercadorias digitais, sujeitas ao ICMS. Essa interpretação considerava que o licenciamento de software não se caracterizava como prestação de serviço e, portanto, não incidia o Imposto Sobre Serviços (ISS).
Entretanto, essa posição foi modificada em 2021, quando o STF reconheceu pelo Tema 590 (RE 688.223) que o licenciamento e a cessão de uso de programas de computador, customizados ou não, devem ser tributados pelo ISS. O entendimento baseia-se no fato de que a operação envolve um esforço humano para desenvolvimento e envolve um contrato complexo, caracterizando uma prestação de serviço prevista na lista anexa da Lei Complementar 116/2003.
Assim, o entendimento atual dado pela jurisprudência é de que as atividades relacionadas a software, especialmente aquelas envolvendo processamento de dados, possuem natureza predominantemente de prestação de serviços. Por ora, tal entendimento pode ser utilizado para enquadrar as demais soluções de IA no âmbito do ISS, embora o modelo de negócio, o formato contratual e a forma de precificação possam vir a influenciar essa classificação.
Apesar dessa mudança de interpretação representar um marco para o setor, pois ajusta a tributação para melhor refletir a natureza econômica das operações, também acaba resultando em desafios para a classificação jurídica precisa das transações.
Com a chegada da reforma tributária e consequente implantação do IBS e CBS, surge o potencial para mitigar esses conflitos ao unificar a tributação sobre bens e serviços, eliminando a necessidade de classificação detalhada e reduzindo disputas judiciais. O modelo tributário do IVA, aplicado de forma ampla e com não cumulatividade, procura trazer maior segurança jurídica ao setor de tecnologia e inovação, conforme será demonstrado a seguir.
Reforma Tributária e a Tributação da Inteligência Artificial
Em 2025, o Brasil deu um passo significativo ao publicar a Lei Complementar 214/2025, que implementa a reforma tributária prevista na Emenda Constitucional 132/2023. Essa reforma cria o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), que substituirão diversos tributos atuais, como ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins.
O novo regime tributário adota também o modelo de Imposto sobre o Valor Agregado (IVA) dual, incidindo sobre o valor agregado em todas as etapas da cadeia produtiva, com direito a créditos tributários pelas etapas anteriores. E outra das grandes vantagens do IVA é justamente eliminar a necessidade de classificar o que está sendo transacionado, já que o imposto incide sobre a operação em si, independentemente da natureza do bem ou serviço envolvido.
Ainda, comparando com a sistemática atual, enquanto o ISS é um tributo cumulativo que não gera créditos para quem adquire os serviços, a sistemática do IBS/CBS permitirá o aproveitamento de créditos referentes a todos os bens e serviços adquiridos (com exceção daqueles destinados a uso e consumo pessoal).
Aplicando as novas previsões legais no contexto da Inteligência Artificial, tem-se que como todas as operações onerosas estarão sujeitas ao IBS/CBS, incluindo o licenciamento e cessão de softwares e demais soluções digitais. Ou seja, por um lado, supera-se a problemática de classificar a IA, mas, por outro, surge um aumento da carga tributária para empresas de tecnologia, já que esta poderá chegar a 28%, enquanto o ISS atualmente varia entre 2% e 5%.
Porém, ainda há a oportunidade de um alívio relevante na carga tributária para os contribuintes. Retomando o sistema do IVA Dual, destaca-se o princípio da ampla não cumulatividade.
Neste sentido, ao investirem em tecnologias de IA, as empresas poderão se beneficiar com a compensação de créditos de IBS e CBS, ainda que essas soluções sejam aplicadas apenas para melhorar processos internos ligados à produção ou à prestação de serviços que venham a ser comercializados. Por conseguinte, os valores referentes à contratação dessas tecnologias poderão ser compensados com o imposto devido, reduzindo o montante a ser recolhido aos entes federativos.
Sendo assim, a reforma tributária traz um impacto financeiro relevante para as companhias que investirem em soluções de IA. Apesar que um dos efeitos seja o aumento na carga tributária em determinadas etapas, a possibilidade de compensar créditos relacionados à aquisição dessas tecnologias representa um fator importante para mitigar custos nas operações de saída.
Portanto, o avanço da inteligência artificial e sua crescente integração na economia digital colocam nítidos desafios, mas também oportunidades para o sistema tributário brasileiro. A adoção de um marco regulatório como o PL 2.338/2023, aliado à reforma tributária que institui o IBS e a CBS, esboça um ambiente jurídico mais seguro e estruturado para as empresas que atuam em um mercado cada vez mais digital.
O time do Consultivo Tributário do Marins Bertoldi Advogados está atento aos desdobramentos desse tema e permanece à disposição para esclarecer dúvidas e aprofundar a análise de acordo com as particularidades de cada caso.