Por Ana Flavia Krueger e Vinícius Encinas Paz
Acompanhando a dinâmica da sociedade brasileira, discute-se no Congresso Nacional uma revisão do Código Civil (Lei n. 10.406/2002), para aprimorá-lo aos dias atuais.
Dentre os pontos em estudo, está a definição do que seria patrimônio digital, que se mostra fundamental nos dias de hoje em que cada vez mais as vidas das pessoas, incluídos seus bens e fontes de renda, transcenderam o mundo material, e ocupam cada vez mais as nuvens de armazenamento de dados.
A comissão de juristas designada para a reforma do Código Civil listou como possíveis bens e direitos que integram o chamado patrimônio digital os perfis e senhas de redes sociais, as criptomoedas, contas de videogames, fotos, vídeos, textos, milhas aéreas e pontos acumulados em programas de fidelidade, entre outros, considerando que a cada momento podem surgir novos serviços digitais. Pelo que está em discussão, há a intenção de que esse patrimônio possa ser objeto de testamento por herança, com sua descrição e transmissão aos herdeiros.
Nesta hipótese, em que determinado bem digital possa ser transmitido em herança, pode surgir, consequentemente, a obrigação tributária, que aos olhos do fisco, cada vez mais empenhado em pôr em prática sua sanha arrecadatória, fazendo com que o patrimônio digital futuramente transferido ingresse no campo de incidência do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD).
Uma possível tributação pelo imposto estadual, no caso de transmissão de um bem, ainda que digital, mas que possua rastreabilidade por documentação que comprove sua propriedade, bem como um valor auferível em moeda de forma mais clara, como no caso de criptomoedas, parece ser melhor compreensível. Contudo, como determinar para os demais casos de “bens digitais” uma formalização suficiente, como titularidade e valor calculável, para que seja calculado o ITCMD?
Atualmente diversas pessoas atuam como “influenciadores digitais”, sendo o número de seguidores e o impacto que geram nas redes sociais, com visualizações e compartilhamentos, o seu ativo mais precioso, e que geram suas receitas, constituindo verdadeiro e considerável patrimônio. Nestes casos, a titularidade de uma conta em rede social é óbvia, mas qual seria o instrumento hábil que legaria o direito sobre login e senha ao herdeiro, e assim este fizesse jus
ao registro em seu patrimônio, também. Ainda, sobre qual valor de base de cálculo recairia o ITCMD incidente numa eventual transmissão de herança, posto tratar-se de números (o de seguidores, por exemplo) que não possui valoração clara, nem regulação por quaisquer meios oficiais.
Cabe mencionar que casos que tratam de transmissão de patrimônio digital são analisados pelo Poder Judiciário há anos, contudo, justamente pela falta de uma regulamentação própria, nem sempre o bem é entendido como tal, esbarrando em questões como privacidade do titular, ou até mesmo não compreensão como algo valorável. O Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao analisar a transmissão de milhas aéreas, após o falecimento do titular, decidiu como possível a exclusão dos pontos pela empresa responsável, uma vez que o cadastro em tal programa se deu de forma voluntária, e a recompensa (milhas) foram recebidas de forma gratuita, não possuindo valor financeiro (REsp n. 1.878.651/SP, julgado em 4/10/2022, DJe de 7/10/2022).
A necessidade de regulação do chamado patrimônio digital não é uma exclusividade brasileira, sendo o tema discutido em outros países, e, tal qual aqui, longe de uma determinação que melhor atenda a todos os interesses envolvidos, principalmente aqueles dos titulares dos bens e seus possíveis herdeiros.