Por Janini Denipoti e Nicolle Sprea Dondalski
O marco da tributação sobre o consumo por meio da CBS e do IBS, inaugurado pela Reforma Tributária (Emenda Constitucional nº 132/2023) trouxe, para além da tentativa de simplificação e padronização de alíquotas, mais do mesmo: procedimento fiscalizatório rígido e subjetividade.
Trata-se do denominado Regime Especial de Fiscalização – REF, que, embora já existente desde a edição da Lei nº 9.430/1996, nutrido pela Receita Federal com base na Instrução Normativa nº 979/2009 e pela criatividade dos Estados e Municípios mediante Portarias e Decretos, ressurgiu revigorado pela força contida na Lei Complementar n° 214/2025[1], a partir de mecanismos de controle que visam garantir o cumprimento de obrigações fiscais e a própria arrecadação por meio de monitoramento constante, estendendo-se, agora, a todos os Entes da Federação.
A transparência, sobre a qual se funda o REF, vem sendo preocupação desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 e motivação para a elaboração de diversas leis, sobretudo nos anos 2000, após uma sequência de escândalos de corrupção de proporção global[2] que exigiu atitudes direcionadas do Estado Brasileiro, traduzidas na Lei Capiberibe (nº 131/2009), Lei de Acesso à Informação (nº 12.527/2011) e, principalmente, na Lei Anticorrupção (nº 12.846/2013).
Ainda que justificado sob a mesma ótica da transparência, assentado no combate à evasão fiscal, fraudes e inadimplementos reiterados, configurando-se, inclusive, como eixo da lógica de enforcement[3], o REF, em verdade, denuncia um endurecimento da norma que apenas prejudica a relação com os contribuintes, indo na contramão da cultura de cooperação buscada pelo ordenamento jurídico que objetiva justamente modificar o conflito permanente entre os espaços públicos e privados.
Isso porque, para além de o Regime trazer em seu cardápio hipóteses totalmente subjetivas para instauração, aferidas a partir de expressões obscuras como “embaraço e resistência à fiscalização”, “evidências sobre a pessoa jurídica”, consiste em medidas desconfortáveis e até importunadoras ao desenvolvimento das atividades empresariais na hipótese de enquadramento à sistemática do REF (art. 339 da LC nº 214/2025):
- manutenção de fiscalização ininterrupta no estabelecimento do sujeito passivo;
- redução, à metade, dos períodos de apuração e dos prazos de recolhimento da CBS e do IBS;
- utilização compulsória de controle eletrônico das operações realizadas;
- exigência de recolhimento diário da CBS e do IBS incidentes sobre as operações praticadas pelo sujeito passivo;
- exigência de comprovação sistemática do cumprimento das obrigações tributárias; e
- controle especial da impressão e emissão de documentos comerciais e fiscais e da movimentação financeira.
Tais medidas podem assumir um caráter nocivo à atividade empresarial com o condão de violar os princípios constitucionais da iniciativa privada e livre concorrência[4], já que seu texto, a princípio, concede o malhete às autoridades administrativas a partir de interpretações amplas com consequências gravosas já conjecturadas pelo legislador, conforme se verifica do rol disposto no art. 339 acima transcrito.
Outros regimes já foram publicizados sob o pretexto de garantir a aplicação da legislação e combater a sonegação reiterada, a exemplo do Projeto de Lei nº 15/2024[5] que, na tentativa de qualificar o “devedor contumaz”, vem sendo alvo de inúmeras críticas por distorcer a essência de sua própria edição, quando acaba estabelecendo critérios capazes de alcançar quaisquer devedores, e não somente o reincidente, desconsiderando, portanto, a “intencionalidade”.
O REF também prevê a prática reiterada de infração à legislação como uma das possibilidades de sua instauração, mas sob a mesma base distorcida, reproduz a falha técnica acima mencionada que é digna de nota. O inciso V do art. 338, e os incisos I e II do § 2º do mesmo dispositivo[6], trazem o conceito da expressão “prática reiterada” a fim de justificar o procedimento, consolidada por duas infrações formais idênticas, verificada nos últimos 5 anos, mesmo que meramente acessórias, ou a reincidência em diferentes períodos, quando constatado uso de meios fraudulentos.
No entanto, embora a segunda hipótese (inciso II) envolva o critério da intencionalidade, que se coaduna com a preocupação do Estado na política antifraude, a primeira (inciso I) indica a aplicação automática do REF, ainda que para falhas de natureza meramente formal, como a falta de cumprimento de uma obrigação acessória, caso seja considerada “relevante” pela autoridade fiscal.
E o método proposto inutiliza o conteúdo do § 3º que evidencia uma tentativa frustrada de excepcionar as obrigações acessórias, já que o legislador novamente se utiliza de mais uma expressão obscura como método de aferição que submete os contribuintes à interpretação deliberada da Autoridade para a instauração do Regime.
As medidas apresentadas possuem forte caráter punitivo enrustidas em políticas antifraudes, características rechaçadas pelo Judiciário que tem se mostrado diligente na repressão à utilização de ferramentas estatais como meios de cobrança indireta de tributos que, diferentemente dos “indícios” previstos pelo REF como suficientes para o emprego de meios coercitivos, é afastado pelos Tribunais quando constatada efetiva obstrução do livre exercício da atividade econômica.
Sobre esse ponto, já se pronunciou o próprio Superior Tribunal de Justiça, a exemplo do Recurso em Mandado de Segurança – RMS nº 51.523/CE quando provocado por uma empresa incluída no Regime Especial de Fiscalização, instaurado com base em Portaria nº 22/2015 de lavra do Secretário da Fazenda do Estado do Ceará, cuja aplicação visava coibir o avanço infracionário da empresa, obrigando à antecipação do pagamento de ICMS.
A Corte Superior, assentada nos arts. 5º, XIII e 170 da Constituição da República, determinou à autoridade administrativa a abstenção de aplicação da medida de antecipação do tributo, identificada como flagrante sanção política, cuja situação “evidencia ser a medida fiscal imposta à impetrante meio indireto de coerção para cobrança de tributos, eventualmente, em atraso, pois o tratamento tributário diferenciado dificulta o exercício da atividade econômica, com o aumento da carga tributária enquanto vigente o Regime Especial de Fiscalização, o que não deve ser tolerado.”
O voto do ministro-relator, acompanhado pela 1ª Turma, destacou o entendimento do STF no RE nº 914.045/MG que declarou “a inconstitucionalidade da restrição imposta pelo Estado ao livre exercício da atividade econômica ou profissional, quando aquelas forem utilizadas como meio de cobrança indireta de tributos”, sinalizando a impossibilidade de o REF impor medidas fiscais que possam inibir a regular atividade empresarial, mesmo na hipótese de contribuintes reincidentes.
Em sua fundamentação, o ministro ainda cuida em apontar as distinções entre a sistemática de antecipação do tributo posto em discussão naquele caso (ICMS) e a sanção política identificada na prática do Estado do Ceará com a instauração do REF, que se traduziu em recrudescimento da modalidade de tributação com a majoração da base de cálculo do imposto enquanto vigente o REF, harmonizando-se com o posicionamento – antigo e atual – do STF a respeito das formas indiretas utilizadas pelos entes federados para a cobrança de tributos de contribuintes inadimplentes.
Apesar do entendimento jurisprudencial acima transcrito, a Lei Complementar responsável pela regulamentação dos novos tributos reproduziu as distorções antes encontradas, com a previsão de sanções desproporcionais, como na exigência de pagamento diário de CBS e IBS (art. 339, IV) e o percentual duplicado das multas de ofício aplicáveis à CBS e ao IBS durante o período submetido ao REF, no art. 341 da LC, em flagrante contrassenso à jurisprudência e à própria norma constitucional, agora expandindo a atuação da Administração para todas as esferas, sem qualquer delimitação.
Diferentemente da configuração proposta pela LC nº 214/2025 quanto ao REF, por ora, outros países, membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em que pese pioneiros em estratégias de fiscalização tributária, seguem critérios mais objetivos e permitem o direito ao contraditório e ampla defesa.
Na Espanha, por exemplo, o modelo denominado Actuaciones Inspectoras, que consiste no exercício de ações administrativas objetivando, igualmente, à fiscalização e apuração do devido cumprimento das obrigações tributárias, engloba o Sistema de Fornecimento Imediato de Informações (SII), que determina aos contribuintes o envio de suas declarações e registros de IVA[7] à Agência Estatal de Administração Tributária (AEAT), reforçando o monitoramento contínuo sem, no entanto, afastar a previsibilidade normativa e a possibilidade de questionamento administrativo (art. 157 da Lei Geral Tributária na Espanha)[8].
Na Alemanha, consolidada como a terceira maior economia mundial em 2025 segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), e cuja ciência do direito tributário teve influência direta na construção tributária latino-americana, observa-se que o procedimento fiscalizatório previsto nos artigos 193 a 208 do “Abgabenordnung” (Código Tributário Alemão),[9] prevê prazos para interposição de recursos acerca do procedimento fiscalizatório, para além das comunicações prévias de sua instauração.
Por isso, embora alinhado com uma tendência internacional de aperfeiçoamento dos instrumentos de fiscalização e cumprimento de normas – enforcement –, forjado nos ideais de ética e transparência, o modelo brasileiro, agora fortalecido, pode incorrer em excessos se não for acompanhado de garantias mínimas que preservem a segurança jurídica dos contribuintes, conferindo munição ainda mais potente ao fisco que já desempenha papel enérgico na supervisão das atividades econômicas fundamentadas em informações eletrônicas, comprometendo quaisquer limitações que visam justamente ao controle da ânsia arrecadatória.
A equipe de Direito Tributário do escritório Marins Bertoldi Advogados permanece acompanhando atentamente os desdobramentos do tema, estando à disposição para esclarecer dúvidas e avaliar as operações empresariais de seus clientes, com foco em estratégias preventivas e contenciosas adequadas.
[1] Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição Social sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto Seletivo (IS); cria o Comitê Gestor do IBS e altera a legislação tributária.
[2] Escândalo do Propinoduto (08/2002), Escândalo dos Bingos, ou Waldomiro Diniz (02/2004), Escândalo dos Correios (05/2005), Mensalão (06/2005), Escândalo dos Atos Secretos (06/2009) e Operação Lava Jato (03/2014).
[3] O termo é oriundo do verbo “enforce”, de língua inglesa, cuja tradução literal é “impor”. A expressão é utilizada em diversos segmentos, representando a repressão de fraudes, sobretudo como parte da política do denominado compliance, visando à adequação e cumprimento de regras, sejam internas ou de nível global. No Brasil, se popularizou no final dos anos 1990 e 2000, cuja década foi marcada pelo desenvolvimento de políticas anticorrupção por meio de regulamentações visando justamente o enforcement, ou seja, o cumprimento efetivo de normas e obrigações.
[4] Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(…)
IV – livre concorrência.
[5] Projeto de Lei que institui programas de conformidade tributária e aduaneira no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda e dispõe sobre o devedor contumaz e as condições para fruição de benefícios fiscais.
[6] Art. 338. Sem prejuízo de outras medidas previstas na legislação, a RFB e as administrações tributárias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios poderão determinar Regime Especial de Fiscalização – REF para cumprimento de obrigações tributárias, nas seguintes hipóteses:
(…)
V – prática reiterada de infração da legislação tributária;
§ 2º Para fins do disposto no inciso V do caput considera-se prática reiterada:
I – a segunda ocorrência de idênticas infrações à legislação tributária, inclusive de natureza acessória, verificada em relação aos últimos 5 (cinco) anos-calendário, formalizadas por intermédio de auto de infração; ou
II – a ocorrência, em 2 (dois) ou mais períodos de apuração, consecutivos ou alternados, de infrações à legislação tributária, caso seja constatada a utilização de artifício, ardil ou qualquer outro meio fraudulento com o fim de suprimir, postergar ou reduzir o pagamento de tributo.
[7] Impuesto sobre el Valor Añadido (Imposto sobre Valor Agregado).
[8] Centro de Estudios Financieros – CEF – Fiscal Impuestos. Disponível em: https://www.fiscal-impuestos.com/. Acesso em 05/08/2025.
[9] Disponível em https://www.bundesfinanzministerium.de/Content/EN/Gesetze/Laws/2017-01-01-fiscal-code.html. Acesso em 05/08/2025.