Não é raro depararmo-nos com certa dificuldade para encontrar bens em nome de um devedor ao longo de ações de execução ou cumprimentos de sentença. No caso do devedor ser uma pessoa jurídica, tal dificuldade pode ocorrer por conta de uma superveniente insolvência da empresa ou até em decorrência de uma efetiva ocultação de patrimônio pelos sócios.
Nesses casos, frequentemente surge o questionamento: “não seria possível executar os próprios sócios da empresa ou direcionar a execução a outras sociedades relacionadas à devedora original?”
Juridicamente, essa dúvida pode ser traduzida para: “não seria possível instaurar um Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ)?”
Inicialmente, cumpre esclarecer que é possível se instaurar vários tipos de IDPJ: para alcance do patrimônio do sócio; para atingimento do patrimônio da pessoa jurídica; ou, ainda, para atingir outras empresas de um mesmo grupo econômico, que em função de fraude e confusão patrimonial perdem a autonomia e acabam respondendo pela dívida uma da outra.
Entretanto, o procedimento para a instauração do IDPJ não é simples, tampouco se dá de forma automática, de modo que, em quaisquer casos, será necessário o preenchimento de certos requisitos legais para sua concessão.
A personalidade jurídica é um conceito criado pelo Direito com o objetivo de separar a figura (e patrimônio) do sócio da figura da sociedade – atribuindo a essa última uma identidade própria e conferindo maior segurança e incentivo à prática da atividade empresarial, à medida que o patrimônio pessoal estaria resguardado, não respondendo pelas obrigações da empresa.
Dessa forma, tendo em vista que o IDPJ tem como objetivo atingir o patrimônio pessoal dos sócios, ou até de outras pessoas jurídicas a eles relacionadas, a sua instauração representa a perda da proteção conferida pela personalidade jurídica, sendo extremamente gravosa ao sócio e, consequentemente, à atividade da empresarial.
Por esse motivo, o IDPJ é tratado como uma medida excepcional, sendo concedido apenas quando comprovada a ocorrência de abuso dessa proteção conferida pela personalidade jurídica – não bastando, portanto, a comprovação da ausência de bens ou de dissolução irregular da sociedade.
O abuso da personalidade jurídica, nos termos do art. 50 do Código Civil, é caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial da sociedade, sendo esses os dois requisitos mínimos para concessão do IDPJ.
O desvio de personalidade ocorre com a demonstração da utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e prática de atos ilícitos por parte dos sócios (art. 50, §1º do Código Civil).
Já a confusão patrimonial ocorre com a comprovação da ausência de separação de fato entre o patrimônio da sociedade e do sócio (art. 50, § 2º do Código Civil), podendo ser verificada, dentre outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial, com:
- O cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa (art. 50, § 2º, I do Código Civil); e
- A transferência de ativos ou passivos, em valores proporcionalmente significativos, sem efetivas contraprestações (art. 50, § 2º, II do Código Civil).
Importante ressaltar que a mera existência de grupo econômico não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica (art. 50, § 4º do Código Civil), sendo necessário o preenchimento desses dois requisitos para possibilitar o redirecionamento dos efeitos das obrigações das sociedades devedoras aos bens dos administradores ou sócios que tenham se beneficiado direta ou indiretamente do abuso. Ademais, tais requisitos se referem a discussões cíveis, sendo notório que os requisitos na esfera trabalhista e tributária são mais brandos para redirecionamento da dívida.
Por esse motivo, é de extrema importância a realização de uma análise prévia acerca da saúde financeira da empresa no momento da celebração do negócio, exigindo-se garantias, por exemplo, para satisfação do crédito. Além disso, em caso de inadimplemento, importante também analisar a viabilidade de uma ação para perseguição do crédito, a fim de se evitar a frustração da execução por ausência de bens em nome do devedor e a ausência de provas para instauração de um IDPJ.
Por Ana Paula de Lima Garbi